CARDUME DE MORTOS
Lá dentro do mar existe um céu
onde envoltos em sargaços
eles repousam
parecendo-se às carcaças
dos velhos galões afundados.
É escuro, é triste, é frio
esse firmamento às avessas
onde eles depois de presos
morreram dispersos
jogados de noite por algum helicóptero.
Faz silêncio nesse cemitério marítimo
onde o ritmo das ondas
não ocasiona nenhuma paisagem
apenas afaga vagamente
uma planície de fantasmas submersos
que mal se localiza ou adivinha.
O vento mudo e poderoso
não embala o vôo das gaivotas
mas abala por meio de estranhos presságios
o navegante que por ali se aventura.
São nossos mortos
decerto com os rostos ainda crispados
de tortura
em cujo leito de sargaços e anêmonas
as algas já não rimam
com seus próprios algarismos
nada corresponde mais a nada
tamanha a desproporção do que foi sentido
do instante de despencar do céu
até o momento do impacto.
Quantos ficaram semanas escondidos
quantos foram semeados no mar já mortos
para colher o quê?
Quantos foram atirados vivos?
Que medo teriam sentido,
de que pavor ou serenidade seriam tomados?
Que teriam dito, pensado,
que angústia teriam legado
pela lembrança de alguém muito querido?
Quanto cada sentimento desse duraria
até afundar, sempre afundar,
afundar tão fundo e tanto
que a impressão que se tem é que continuam afundando
apenas para manter nossa ilusão
de retê-los ainda em vida?
Nossos mortos não pedem vingança
só justiça
de algum jeito eles sempre retornam
Vocês que perambulam pelos mares e pelo oceano
prestem atenção a tudo que de sua entranha aflore:
algum sinal, víscera, qualquer indício estranho
talvez uma mão crispada, roxa
segurando um bouquet de flores encharcadas
Vocês que passeiam por praias desertas
por favor, ouçam com atenção qualquer ruído,
o barulho de um corpo no mar
é assim como o estalar da asa de uma mariposa muito frágil
(Alex Polari, poeta brasileiro nascido em 1951, em João Pessoa - PB
livro “Camarim de Prisioneiro”, 1980)
Imagem: fotos de mortos e desaparecidos políticos no Brasil durante a ditadura civil-militar.
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