Golondrina Ferreira é metalúrgica, poeta e militante dessa vida. Dos três ofícios, o de poeta é o mais recente mas diz estar aprendendo nos três.
Abaixo, uma seleção de seus poemas do livro "Poemas para não perder", lançado pelas Edições Trunca em 2019.
SEGUNDA
As máquinas, mortas.
Nós, vivos.
Logo se inverte a coisa.
A fábrica tem fome,
passou um dia inteiro
de barriga vazia.
Então abre suas bocas de catraca
e nos seus dentes vamos passando
um a um.
Dá o sinal:
nos mastiga
e joga o bagaço fora
no fim da jornada.
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ENTRANDO NA LINHA
Não era isso que você queria
quando procurou emprego?
As condições já não estavam
no contrato?
Que parte faltou entender
de que o ar condicionado
é ajustado para as máquinas
e não pra você?
Que parte você não entendeu
de que lá fora é pior,
que para o teu posto
tem pelo menos mais dezoito na fila?
Você ainda não se deu conta
que greve é coisa de vagabundo
e organização, de terrorista?
Todas as semanas você consegue,
por que hoje não?
Todos os outros conseguem,
por que você não?
Viu, é simples:
abaixe a cabeça
respire contido
feche as pernas
feche a cara
feche a boca
pinte as unhas.
Não responda
nem questione
de preferência
não pense
mais que o estritamente
necessário.
Isso, muito bem.
Gostei de ver.
Quem olha nem imagina
que você sabe sorrir
e desobedecer.
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INFORME
Será possível que precisemos escrever
Para que nossos compatriotas entendam
Que aqui não é a China
Mas pode ser pior?
Será preciso contar, ainda que pareça natural
Que se trabalha seis dias por semana
Alguns trabalham seis noites
E outros trabalham uma semana
de dia e outra de noite?
Será preciso dizer, mesmo que doa,
Que o material corta a luva e os dedos
Mas é preciso aguentar
Pois uma luva mais forte
sai muito cara pra empresa?
Precisaremos falar, ainda que incomode
Que o salários aqui são de mil reais por mês
Os aluguéis de quinhentos
E as pessoas têm de um a três filhos?
Terá que ser dito, ainda que não se entenda
Que operamos nove máquinas
Ao mesmo tempo
E uma tela de 32 polegadas pisca em vermelho
à vista de todo o prédio
Quando alguma delas não produziu o suficiente?
Teremos que repetir, ainda que dê raiva
Que nossos bebês com três meses tenham que comer comida
Porque com quatro meses
Voltaremos a trabalhar?
Haveremos de relatar, ainda que canse
Que as luzes são muito fortes para não dormirmos
Que é proibido conversar
Assim como comer, olhar o celular
Ou sair do seu posto de trabalho?
Ainda faltará dizer
Que passamos oito horas olhando pecinhas minúsculas fazendo
o mesmo movimento com as mãos
Dentro de um cubículo de lata de um metro quadrado
Para evitar distrações?
Vai ter que ser dito, ainda que nojento
Que o banheiro também é usado
Para dormir e comer
Porque não há lugar próprio para isso
E dentro da fábrica é proibido mesmo no horário de pausa?
Teremos que dizer, ainda que agonie
Que cheiramos álcool acetona
Respiramos pó de alumínio zinco estanho
às vezes ficamos tontas mas saímos dar uma volta
E retornamos ao trabalho?
Será preciso mesmo escrever, ainda que atordoe
Que o barulho é de cem decibéis
Quando o permitido é oitenta
Mas não se paga insalubridade
Pois o protetor de ouvido abafa um pouco o som
Será preciso dizer, ainda que assuste
Que quem se acidenta é culpado e demitido
Por isso escondemos os cortes
Fazemos os próprios curativos
E não contamos pra ninguém?
Mas se faz falta dizer, será dito, mesmo com fome
Que as pausas são de uma hora
A comida é ruim e cara
Não há lugar para descanso
E muitos não param nem esse tempo para conseguir bater a meta
Teremos enfim que gritar, ainda que nos dê vergonha
Que a cada falta nos descontam 20% do salário
Mesmo que seja por doença
E por isso não faltamos
Nem mesmo quando adoecemos?
Diremos, se é necessário, mesmo sendo alarmante
Que depois do trabalho tansporte e do sono recomendado
sobram três horas de vida útil
De modo que às vezes não vemos os filhos
E às vezes não dormirmos.
Agora que já não se pode mais
Voltar atrás na leitura desse poema
É você quem nos diz
A essa altura do relato
E de posse de todas essas informações
O que é mesmo que você vai fazer?
--
ATESTADO
Atesto para os devidos fins
que a paciente não se encontra
em condições para o trabalho
avisem os chefes
suspendam as metas
reportem aos gerentes de RH
ela se encontra
afoita
eufórica
tremendamente apaixonada
devendo permanecer afastada de
suas atividades
até que o modo de produzir a vida
não seja o de matar
o amor.
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AOS QUE DESANIMAM
Gostaria de te acordar com beijos
e boas notícias
- o sol saiu,
os pássaros comemoram,
as crianças brincam no pátio,
vem visita de longe,
ninguém mais vende seu trabalho,
ninguém manda sem trabalhar.
Mas o inimigo ainda é soberano,
está por todos os lados
e dentro de nós.
Nos submete
e inverte todas as coisas:
nosso suor vira o seu produto,
uma pequena parte vira o nosso preço
e não conseguir ficar rico
vira um fracasso individual.
Cultura vira ideologia,
cooperação vira concorrência,
nosso amor vira controle,
sexo vira violência.
O que era tempo vira trabalho,
o que era nosso vira alheio,
o que era história vira
esquecimento.
Gostaria de te acordar com carícias
e boas notícias,
mas ainda há muito pra ser feito.
Estamos cansados, você diz,
foram tantas derrotas...
somos poucos e estamos
pior do que antes,
o inimigo matou
os que não pôde cooptar
Gostaria de te consolar com um abraço
e boas notícias,
mas você tem razão
- somos poucos e estamos cansados,
no entanto ninguém,
senão nós,
poderá fazê-lo.
Nós, com todos os nossos defeitos,
com nosso cansaço,
com as marcas da derrota,
com nossos mortos por vingar.
Com toda a escuridão
por cima dos ombros
nos curvando,
com a potência de derrubar toda ela
ao levantar.
--
A POESIA INSISTE
... como?
isso mesmo. não pode
escrever poesia
nos bolsos
assim como não pode
andar, falar, parar.
é justo, é necessário
é pela sua segurança
é o certo e vocês já foram
advertidos.
ah claro, sim
senhor,
me desculpe,
não seja por isso,
não se preocupe.
eu vou escrever
com marretas
no teto
com graxa
nas paredes
com a trincha
no chão.
proíbam e eu escreverei
com as unhas
na lataria das máquinas
com chaves
riscando os robôs
impeçam e será com pincel
nos muros
com facas nos troncos
com ar comprimido
na noite
demitam-me
e escreverei
com um arado na terra
com a foice
nas plantações
prendam-me
e ela estará
nas paredes dos calabouços
com gotas
de sangue no chão.
com formões
nas cabeças mais duras
com uma bala
nos vossos peitos
cortem meus dedos
e eu escreverei
com os olhos
no horizonte
com a língua
em alguma boca
com os pés na areia
escreverei
com o nariz no céu.
(Golondrina Ferreira)
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NOVOS VELHOS TEMPOS
os lobos ameaçam voltar pra rua
sem as carapaças
de cordeiro
estão com medo de quê?
acaso não foram suficientes
os anos de mordaça
participativa
chicote eletrônico
acesso ao consumo
de segunda classe
e às dívidas?
vocês sabem do que somos capazes
quando às vezes nós mesmos
esquecemos
***
são tão perversos os lobos
quanto os cordeiros
são faces da mesma moeda
funcionários
do mesmo patrão
eles usam as armas
apenas quando necessário
eles usam as armas
sempre que necessário
o que muda é se vamos sangrar
de emboscada numa esquina
ou morrer um pouco por dia
no sufoco das catracas
se vamos perder os dedos
na tortura
ou nos acidentes de trabalho
se vamos ser mortos
nas avenidas
ou nos becos escuros da periferia
se vamos ser ameaçadas e
estupradas
nas ruas
ou na sutileza dos lares
o que sim, faz muita diferença,
mas que, em última instância,
nos mata, nos mutila, nos estupra.
***
juntemo-nos, vítimas da barbárie
os que estão surpresos com ela
os que já acham que ela é natural
não se trata de escolher
o terreno pra lutar
(nunca pudemos)
e quando o cerco aperta
não nos resta
senão ficar em pé
ainda que seja
por teimosia
por não ter pra onde correr
só nos resta
encher o peito
segurar as mãos
abrir bem os olhos
e atender às novas exigências:
será preciso voltar
a usar metáforas
voltar a compor
voltar
a pintar muros
a saber se defender
vamos precisar
voltar a conspirar
comunicar sem alarde
tecer outras redes
a olhar as portas
e retrovisores
a se esconder nas casas
de amigos
e abrir as nossas
atentar às armadilhas
aos cordeiros que contra os lobos
vão querer nos jantar
será preciso aprender a cuidar
sem temer
preparar
sem parar
e juntar
sem ceder
***
não será a primeira, camaradas.
mas pode ser a última.
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