PÁTRIA LIVRE: 19 DE JULHO DE 1979
(Gioconda Belli, Nicarágua, poeta que também foi guerrilheira)
Estranho sentir esse sol outra vez
e ver o júbilo das ruas alvoroçadas de gente,
as bandeiras rubro-negras por todos os lados
e uma nova face da cidade que desperta
com a fumaça dos pneus queimados
e as altas fileiras de barricadas.
O vento vem em cheio em meu rosto
onde circulam livres pó e lágrimas,
respiro fundo para me convencer de que não é um sonho,
que ali está a montanha Motastepe, o vulcão Momotombo, o lago,
que no final conseguimos,
que nós vencemos.
Tantos anos acreditando nisto contra a maré e o vento,
acreditando que este dia era possível,
mesmo depois de saber da morte de Ricardo, de Pedro, de Carlos…
de tantos outros que nos arrancaram,
olhos que nos tiraram,
sem jamais conseguirem nos deixar cegos para este dia
que hoje rebenta entre nossas mãos.
Quantas mortes se aglomeram em minha garganta,
queridos mortos com quem sonhamos uma vez este sonho
e me lembro de seus rostos, de seus olhos,
da confiança com que conheceram esta vitória,
da generosidade com que a construíram,
certos de que esta hora feliz aguardava no futuro
e que por ela valia muito a pena morrer.
Dói-me feito parto esta alegria,
dói-me não poder despertá-los para que venham ver
este povo gigante saindo da noite,
com o rosto tão fresco e o sorriso tão presente nos lábios,
como se o viessem acumulando
e o tivessem soltado em tropel, de repente.
Há mil sorrisos saindo das gavetas,
das casas queimadas, dos paralelepípedos,
sorriso vestidos de cores como pedaços de melancia,
de melão ou de nêspera
Eu sinto que preciso gozar e regozijar-me
como o teriam feito meus irmãos adormecidos,
deleitar-me com este triunfo tão deles,
tão filho de sua carne e de seu sangue
e em meio ao burburinho deste dia tão azul,
montada no caminhão,
passando pelas ruas, no meio das caras tão bonitas
de minha gente,
queria que me nascessem braços para abraçá-los todos
e dizer a todos que os amo,
que o sangue nos irmanou com seu vínculo doloroso,
que estamos juntos para aprender a falar de novo,
a caminhar de novo;
que neste futuro – herança de morte e gemidos –
soarão estrepitosas batidas de martelo,
rajadas de torno,
zumbidos de facão
pois estas serão as armas
para retirar luz das cinzas,
cimento, casas, pão, das cinzas;
pois não desanimaremos, nunca nos renderemos,
que saberemos como eles
pensar nos dias lindos que outros olhos verão
e nesta bebedeira de liberdade
que invade as ruas, sacode as árvores,
sopra a fumaça dos incêndios
que nos acompanhem
tranquilos
felizes
sempre-vivos
os nossos mortos.
(Tradução: Silvio Diogo, livro “O Olho da Mulher”, Editora Arte Desemboque)
Avante, Chile! Que a insurreição vire revolução!
Foto: Susana Hidalgo
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